quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Ser e esquecer

Saber de não saber, se esquivar da verdade de ser, essa é a vida. Mentir para se aquecer, mesclar a sabedoria e a esquecidão, ser só vestes, só verniz, essa é a vida, não pensar, apenas sentir. O agora se esquece, por isso é tão bom. É olhar, é parecer, sem pensar de sentir. Sentir é um parecer, mas de eterna verdade. Ontem, amanhã, todos emergentes de um mundo de pensar, de tentar lembrar, de conservar. Conservar é o que o pensar quer. Apolíneos, assim deveríamos ser chamados os burgueses. É destino de Dionísio ser esquecido, porque Dionísio é a hojidão do agora, é o estalo a onda volúpia embriaguez. Deixemos o amanhã da ressaca pro Apolo.

Um comentário:

  1. Acho que um dos episódios mais perturbadores da História - não prometo me prolongar - foi a da peste negra, quando se alastrou pela Europa. Deixe-me tentar explicar porque estou falando disso aqui. Acho impossível compreendermos ou empatizarmos o horror que foi essa epidemia. A mortalidade atingiu proporções inaceitáveis. O fato foi que, num certo momento, os poucos sobreviventes foram tomados de um desespero tamanho que, vendo-se abandonados por Deus - pois que um dos Seus maiores aspectos, a saber: a Misericórdia, quer dizer, o sentimento de triunfo da vida dia após dia mesmo quando sua fragilidade é tanta - simplesmente deixara de existir, começaram a pegar o que lhes restaram de riqueza e começaram a festejar. Festas, banquetes, álcool, extravagância, orgias. Subitamente, naquela terra devastada e encoberta de morte e melancolia, sem Deus nenhum, com Apolo sendo devorado por ratos, eis que surge Dionísio com um barril de rum nas costas, Pã tocando flauta lá atrás com os olhos injetados nos seios das mulheres, Baco ali já mordiscando um queijo e tentando tirar, com seus chifres, a rolha da garrafa do seu melhor vinho.

    A mim parece que Dionísio sempre está na fartura, sempre é aquele dedo a mais que, transbordando, explodiria de vez toda aquela carga acumulada durante todo o ano (ou semestre). Mas ele mesmo surge também no outro extremo, quando prosperidade é inexistente, quando tristeza se converte em marasmo, quando tudo parece perdido. Dionísio, sei agora. Tá nos dois extremos e, mesmo assim, não dá pra capturá-lo, visto que ele "é a hojidão". Todos sabemos os momentos que antecedem a festa - seja ansiedade, boas expectativas, as mulheres se maquiando, os homens comprando camisinha - e aqueles (momentos) que estão ulteriores à festa - sono-pós-coito para alguns, corpo derramado no meio-fio para outros, muito trabalho pro faxineiro no dia seguinte e aquelas vozes esparsas na noite, comentando a vida, quando todas as luzes do salão foram apagadas. Talvez seja este o horror de Apolo, saber que vai voltar à labuta após a passagem de Dionísio (pois Dionísio destrói) - como mesmo você diz. "Deixemos o amanhã da ressaca pro Apolo". Seu sofrimento é de se saber necessário sua existência, mesmo quando não amado. E mais ainda, sofre, por muitas vezes se esquecer que Dionísio lhe dá, sim, o seu sentido, trazendo unicamente sua finitude, sua desorganização. E, escondido em seu orgulho, mesmo não querendo, compreende a necessidade de Dionísio - mesmo Dionísio sendo avêsso à palavra 'necessidade'. Apolo? Apolo, por sua vez, é o todo-dia.

    Bom, me prolonguei tanto, e só pra comentar um trecho do teu texto. A outra, uso duas frases do Fernando Pessoa, da sua obra-prima, o Livro do Desassossego: "Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver." E, por fim, a outra frase: "Se pudesse pensar, o coração pararia".

    Acho que é isso, embora há muito a se dizer, e todo o tempo do mundo pra tal. Estou à procura do agora, do sentir. Mas (re)pousei, nos últimos tempos, num porto-seguro, a consciência. Cito um trecho do Camus: "Não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente". É esse o meu lema, atualmente.

    Ah sim, parabéns pelo blog.

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